Parte ll – A destruição da mestiçagem na região do nordeste do Estado de Roraima: o caso Raposa / Serra do Sol

Compreender a maneira como os grupos tribais relacionavam-se no nordeste de Roraima permite esclarecer como os indígenas chegaram aos níveis de interação atuais numa sociedade feita à base da  mestiçagem nessa região. Certamente, a relação com  o elemento branco impôs novos ritmos sociais que alteraram os costumes tribais e influenciaram na formação de uma sociedade mestiça destruída por iniciativas racistas, que começaram a ser desenhadas nos primórdios do governo FHC e se institucionalizaria, radicalmente, na gestão do PT, com consequências sociais deletérias a indígenas e mestiços. Veja video abaixo.

http://www.youtube.com/watch?v=Mt3xcoOT-Sk

http://www.youtube.com/watch?v=ktRa01IzFcs

http://www.youtube.com/watch?v=6hya04eqJxg

Quero mostrar que pela analise das relações tribais no passado no nordeste de Roraima, pode-se esclarecer muito sobre a maneira como os grupos tribais foram se conformando em unidades interativas voltadas à criação de gado vacum. Por conta de pareceres antropológicos racistas, os mestiços foram excluídos de uma complexa interação que existia na Raposa /Serra do Sol. Começo pela analise da própria dinâmica dos grupos tribais na referida região, eles próprios resultados de um intricado arranjo.

Comecemos.

São várias as menções na história do indigenismo no Brasil sobre enfrentamentos e escaramuças entre índios e índios[1]. Para ficar só num exemplo, o mais notável, no litoral Brasileiro os Tupinambá moviam guerra contra os Tupiniquim e outros povos, obedecendo uma complexa lei militar onde um simples toque no oponente era suficiente para que ele não corresse mais, entregando-se, resignado, ao adversário como prisioneiro, mesmo sabendo que posteriormente seria devorado cerimonialmente. Uma estrutura que é universal, as guerras sempre estimularam o intercâmbio nas culturas tribais numa mesma região. O Nordeste Roraimense segue a mesma característica, seguindo o que Galvão (1960) chamou de “Áreas Culturais”, explicando que as guerras, juntas com o comércio e o casamento impulsionam a troca de muitos traços culturais, sociais, religiosos e mitológicos entre povos tribais. Seguindo esse raciocínio, como eram várias etnias habitando contiguamente o nordeste roraimense[2], é claro que cada qual tinha interesses particulares como roubo de bens materiais, alimentos, motivos religiosos ou mitológicos, rapto de mulher. A guerra tinha o objetivo explícito de submeter oponentes. Característica de muitos povos tribais, a guerra era, às vezes, até contra parentes. Fernandes, no seu estudo sobre os Tupinambá conta que bastava uma cisão, por um desavença qualquer, para um grupo se afastar, tornando-se inimigo daqueles que ficavam, sendo inclusive comidos cerimonialmente se capturados em guerra[3]. As hostilidades podiam aumentar ou diminuir, dependendo da administração das tensões feita pelo grupo. Isso era típico entre todos os Tupi.

No caso de Roraima, quando se olha para o mosaico das etnias, ficam claro aquelas que melhor se saíram desses embates. Das etnias existentes no período dos aldeamentos deram-se melhor os Paraviana, Wapixana, Sapará, Macuxi, Sirianá, Waycá, Maracaná, Parauna. Desses, os Macuxi e os Wapixana sobreviveram. Estes últimos grandemente absorvidos pelos primeiros, tanto que convivem nas aldeias nos dias de hoje. Kock-Grunberg conta em seu diário que os Maracaná eram uma tribo muito temida no Oeste das nascentes do Uraricapará. Inimigos mortais dos Awaké, quase os aniquilaram quando os Sirianá uniram-se a eles por matrimônios[4]. Hamilton Rice, do mesmo modo, quando na sua viagem pelo vale do rio branco, em 1924, faz seguidas referências a enfrentamentos belicosos entre Máku, Maiongong, Sirianá e outros[5].

Mas nenhuma guerra entre as tribos rio branquenses teve a dimensão e a duração que a dos Mucuxi contra os Wapixana. Um professor índio da aldeia do Araçá, contou-me numa ocasião, para explicar o direito à terra que habita, que quando uma aldeia Macuxi guerreava os Wapixana, solicitava ajuda de outras aldeias Macuxi; se vencesse cedia parte da terra à aldeia aliada. Muitos perguntam o motivo dos Macuxi guerrearem os Wapixana. Talvez a memória e a sabedoria do professor sirvam para mostrar que, entre outros motivos estava a posse da terra.

Os Macuxi são originários da bacia do Orinoco, portanto não são originários da bacia do rio Branco. Migrando em pequenas levas, atingiram o rio Branco quando expulsos de seus locais de origem: primeiro pela guerra com os Carib verdadeiros, depois pelo enfrentamento com os espanhóis. Na medida em que desciam iam encontrando e expulsando povos à sua frente. Especula-se que os Taurepang, tenham feito parte da migração empreendida pelos Macuxi, separando-se deles momentos depois e se afirmando como povo, até quando Koch-Grunberg os encontrou espalhados em sete cabanas nas cercanias do monte Roraima[6]. Nesse movimento, os Macuxi foram absorvendo também outros povos, como os Purucotó e os Paravilhana (Parauiana). Na medida em que uma nova cultura era absorvida iam acumulando novos traços culturais, desencadeando processos aculturativos que deram nova face ao ethos tribal, principalmente quanto se soma aos migrantes que chegaram à região em função do Ciclo da Borracha..

Mas a etnia que sempre suscitou temor entre os Macuxi foram os Ingaricó. Koch- Grunberg relata que, na ocasião de sua viagem, a fama de bravos tida pelos Ingaricó pelos índios da região[7]. Na verdade, a denominação Ingaricó decorreu de os Macuxi os considerarem “pessoas do mato” por viverem isolados na região da “mata serrana” mantendo relações de contato mais regularmente com seus semelhantes que, em maior número, viviam na Guiana, do outro lado da fronteira brasileira. Aliás, o isolamento sempre foi característica desse povo; eles mesmos autodenominavam-se Kapon, raramente Ingaricó, só para se diferenciarem dos Pemon, os outros. Vivem atualmente no limite Norte do Estado de Roraima, nas serras limítrofes do Brasil com a Guiana e a Venezuela. Suas residências distribuem-se pelas margens encachoeiradas do rio Cotingo

Esse povo sempre teve rusgas com os Macuxi (claro que hoje fazem parte do índio genérico e coletivo do CIR -Conselho Indígena de Roraima-  e da FUNAI por conta de seus ativismos) e outras etnias vizinhas;  sobreviveu aos muitos de seus ataques e deu-lhe, outrora, o estereótipo de “brabo”. Koch-Krünberg colheu um mito contato por um Taurepang chamado “visita ao céu’, onde se narra o herói passeando sobre cadáveres numa aldeia destruída pelos Ingaricó[8]. A fama de bravos reforçou muitos mitos que alentavam a relação deles com deuses desconhecidos. Os piores “Canaimés” (espíritos opressores e violentos, parte da mitologia dos índios do nordeste de Roraima) segundo os Macuxi diziam ser Ingaricó. Aliás, os Ingaricó são persistentes em dizer que são Kapon e não Ingaricó, por justamente serem os destas etnia os mais perigosos “canaimés” do lado guianense. Por conta disso, muitos Macuxi relutam em aventurar-se em terras Ingaricó, pois ainda hoje acredita-se que os Canaimés lá estão.

Mas há poucas décadas, os Macuxi praticavam o cristianismo à sua maneira, tendo inclusive surgido uma religião sincrética cristã-indígena, que se difundiu entre outros grupos tribais da família lingüistica Carib dando origem ao que ficou conhecido como “Areruia”, corruptela da palavra Aleluia, fundada, consta-se, por um Macuxi das montanhas Kanukú da Savana do rio Rupununi[9].

Os Ingaricó o praticam com maior frequência, sendo o culto conduzido por um sacerdote, chamado por eles de “pastor”. Entre esses, o areruia cobre uma parte considerável das atividades diárias. Uma pequena excursão, por exemplo, é precedida por uma prece dessa religião sincrética. Assim o é também, quando da partida de um visitante ou outras atividades corriqueiras. Todavia, não são todos os habilitados para a incumbência de ser pastor, o que o torna uma personalidade rara e respeitada. No desempenho de sua função, caminha de uma aldeia a outra, chegando a atravessar a fronteira Brasil/Guiana para prestar serviços religiosos entre os Kapon do outro lado. É ele quem estimula também a construção de templos, casas que não se diferenciam daquelas que os índios habitam, a não ser por ser um lugar reservado aos cultos.

Porém na atualidade os indígenas são cristãos: católicos ou protestantes. Os praticantes do catolicismo foram profundamente influenciados pelo ativismo de padres militantes de esquerda, desde os anos 80. Essa influência pode ser verificada nos ideias do CIR www.cir.org.br , cujas propostas políticas assemelham-se muito daquelas do MST. Essa força política ativista foi mobilizada vigorosamente para descaracterizar a mestiçagem na Raposa / Serra do Sol. Não obstante, o ethos mestiço perpassa a cultura indígena em todos os aspectos, inclusive no padrão habitacional, em que as casas indígenas são abastecidas com água e eletricidade. Muitas delas são construídas em alvenaria, com exceção em alguns locais da Serra do Sol, onde vivem os Ingaricó. Muitas aldeias seguem o padrão de vila, com casas “arruadas” e divididas em quadras, aproximando-se muito do modelo urbano de moradia.

O fundamental aqui é compreender que esse ethos é consequência de casamentos interétnicos que gerou na região um modelo de sociedade baseada com forte presença de elementos mestiços, que deixou de existir em nome da etnização dos indígenas da região. A consequência dessa perversa setorização étnica pode ser mensurada no post https://animusdefendendi.wordpress.com/2013/10/26/outra-vez-a-raposa-serra-do-sol/, assunto que ainda continuarei falando.

Bibliografia

Butt, Audrey J. “The Bird of a Religion” in: J. R. Antrpology Institut Great. Bretain Ireland, London, 90 (01), 1960.

Clastres, Peirre. La  Société Contre l’État. Paris: Ed Minuit, 1974.

Fernandes, Florestan.  Função Social da Guerra entre os Tupinambá. São Paulo: Rev. do Museu Nacional, Vol. VI, 1962.

Itatiaia/EDUSP, 1978.

Koch-Grunberg, Theodor. Del Roraima al Orinoco (3 vols.). Caracas-Venezulela: Ediciones del Banco Central de Venezuela, 1981

Laraia, Roque de Barros e Da Matta, Roberto. Índios e Castanheiros. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967.

Ribeiro de Sampaio, Francisco Xavier. “Relação Geográfica e Histórica do Rio Branco da América Portuguêsa”. In: Revista Trimestral de História e Geographia. Rio de Janeiro, tomo XIII, 1850.

Rice, Hamilton. Exploração na Guiana Brasileira. Belo Horizonte/São Paulo: Ed. Itatiaia/EDUSP, 1978.


[1] – Cf. Fernandes, 1962; Clastres, 1978; Ribeiro, 1982; Laraia e Da Matta, 1967.

[2] – Cf. Koch-Kunberg, 1979, Tomo I; Ribeiro de Sampaio, 1985: 104.

[3] – Fernandes, 1962: passim.

[4] – Id., Ibidem: 188.

[5] – Cf. Rice, 1978.

[6] – Koch-Grünberg, 1979: 109 e segs.

[7] – Id., Ibidem: 77.

[8]  – Id., Ibidem: 76: 85.

[9] – Butt, 1960: 67-69, Apud, 1972: 99.



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